14:07

“O Guardador de Rebanhos”

Publicada por Jonas Matos |

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
Alberto Caeiro
A parte IX do poema “O Guardador de Rebanhos” é das composições poéticas que mais me interesso por estranhar a estrutura do segundo verso da primeira estrofe, “O rebanho é os meus pensamentos” e, também, por achar curioso alguém ser um guardador de rebanhos que, na realidade, são pensamentos. Ser um guardador de pensamentos é uma ideia singular.
Surgiu-me, de imediato, a máxima de Descartes Cogito ergo sum – “Penso, logo existo”, em oposição à máxima criada pelo cientista português, António Damásio, “Sinto, logo existo”.
Em Alberto Caeiro, Fernando Pessoa mostra que já estava à frente do seu tempo, dado que, de uma forma indirecta, punha já em causa as teorias classicistas. Aliás, Caeiro é, na minha opinião, o mais interessante dos três heterónimos de Pessoa, ou até mesmo do próprio Pessoa, pois realça a natureza, chama a atenção para a realidade que nos é transmitida através dos nossos sentidos e vive essa realidade tal como ela é, sem juízos de valor.
Sob uma aparência de simplicidade, esta composição poética tem uma grande riqueza de conteúdo.

17:43

Porque...

Publicada por Jonas Matos |

Porque
Porque os outros se mascaram mas tu não.
Porque os outros usam a virtude. Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados. Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem. E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos. E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
por Sophia De Mello Breyner Andresen In Mar Novo (1958)
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Sinto-me intensamente identificado com a crítica social que este poema contém.
Na sociedade há os mascarados de virtudes que na penumbra cometem as maiores atrocidades. Há os corajosos que tremem na solidão das suas vidas. Há ainda aqueles que só vivem das aparências maquilhados de hipocrisia.
Mas, na sociedade, também há os que lutam por ideais e vêem no seu semelhante a continuação da sua própria existência. Este poema retrata a sociedade em que vivemos, onde em nome da competição, vale tudo.
Sophia é uma verdadeira analista da realidade social conturbada, onde cada vez a solidariedade, o afecto, o carinho estão mais arredados e o individualismo cresce a um ritmo alucinante.

13:04

As preocupações

Publicada por Jonas Matos |

Por norma, as coisas que nos preocupam, não acontecem.
Tentamos com esforço procurar respostas, mas sem nunca termos localizado o problema.
Sobre o fim, qualquer que seja ele, não há fim. Tudo é eterno, as preocupações também.